Estratégias de conservação da biodiversidade requerem o engajamento de cidadãos, governo, comunidades locais e cientistas, avaliaram palestrantes da Escola São Paulo de Ciência Avançada Cocriando Avaliações de Biodiversidade
Por Paula Drummond e Érica Speglich
Embora a biodiversidade seja essencial para a avaliação ecológica e a conservação, suas medições práticas às vezes não capturam a essência do funcionamento dos sistemas naturais e são inadequadas para orientar efetivamente as tomadas de decisão. É crucial expandir o escopo da coleta e análise de dados, de modo a acompanhar demandas e aprimorar conceitos e, sobretudo, aproximar reciprocamente a produção e a demanda do conhecimento.
Essa avaliação foi feita por Thomas Lewinsohn na abertura da Escola São Paulo de Ciência Avançada “Cocriando Avaliações de Biodiversidade”, organizada pelo Programa de Pós-graduação em Ecologia da Unicamp, com apoio da Fapesp. O evento reuniu 57 participantes de 22 países de quatro continentes, entre pós-graduandos, pesquisadores em início de carreira, gestores e técnicos da área ambiental. Os participantes passaram 14 dias em São Pedro (SP) discutindo formas de integrar conhecimento acadêmico e prático sobre biodiversidade para subsidiar tomadas de decisão. Além disso, foram organizados grupos de trabalho para desenvolver possibilidades de solução para demandas e problemas reais identificados pelos próprios participantes em suas áreas de trabalho.
“Há um desencontro entre a produção de conhecimento e seu uso prático. Uma das propostas centrais da Escola é promover essa integração, aprimorando o alinhamento entre a criação e a aplicação prática das informações,” afirma Thomas Lewinsohn, coordenador do evento. Para isso, a Escola buscou criar um ambiente colaborativo, no qual os participantes pudessem trocar ideias livremente e trabalhar juntos, visando a aplicação prática das percepções obtidas em problemas reais, a partilha de experiências e a formação de novas parcerias. “Para os trabalhos finais elaborados pelos participantes, esperamos que o conhecimento gerado seja organizado em uma linguagem prática e em formatos que facilitem seu uso e entendimento para todos os envolvidos, como Notas Técnicas, Guias e artigos voltados ao público não acadêmico”, complementa Simone Vieira, vice-coordenadora da Escola.
Aproximar o conhecimento acadêmico das demandas práticas de conservação é a inspiração de algumas iniciativas de pesquisa no Brasil. Um exemplo são os Programas Biota/Fapesp, que já subsidiou diversos instrumentos de políticas públicas em seus 25 anos de existência, e o Biota Síntese, que promove a colaboração entre pesquisadores, gestores e sociedade civil para subsidiar políticas públicas voltadas à sustentabilidade em áreas urbanas e rurais no Estado de São Paulo. “Desde 2022, o Biota Síntese gerou três Notas Técnicas: sobre biomassa de carbono no estado, sobre arranjos financeiros para o financiamento da restauração de ecossistemas e sobre Estratégias para a Implementação do Plano de Ação Climática do estado“, afirma Mariana Cabral, da Universidade de São Paulo e Gestora da área de Ciências Biológicas da Fapesp.
Outro exemplo, desta vez do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), é o Centro de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (SinBiose). Criado a partir de demandas identificadas pelo Programa de Pesquisa Ecológica de Longa Duração (PELD), o SinBiose tem como objetivo abordar problemas complexos e interconectados, como as emergências climáticas, a perda de biodiversidade, a soberania alimentar e as doenças tropicais negligenciadas, por meio da coprodução de conhecimento e do incentivo à tomada de decisões baseadas em evidências. “Já produzimos oito policy briefs com os resultados dos projetos”, explica Marisa Mamede, do CNPq.
Coprodução como caminho
Uma das estratégias que tem despertado crescente interesse entre aqueles que buscam aproximar a ciência das necessidades dos seus usuários é a coprodução de conhecimentos. Essa abordagem implica na construção conjunta de saberes entre todos os envolvidos, de forma colaborativa e sem hierarquias. Esse processo requer engajamento em discussões intensas e, principalmente, na criação de produtos ou ações compartilhadas, sejam elas técnicas ou científicas. “Muitas vezes, o termo tem sido utilizado como sinônimo de processos participatórios, mas a coprodução pressupõe uma transformação nos conhecimentos de todos os envolvidos no processo”, esclarece Maria Carmen Lemos, da Universidade de Michigan (EUA).
“O conhecimento gerado por processos de coprodução precisa ser adaptado para apoiar a tomada de decisões”, afirma Lemos. “Para alcançar algo adequado, é necessário flexibilidade e negociação, em um jogo de interações em que o respeito pelo saber e pelas decisões do outro é fundamental. Nesse processo, o conhecimento científico também se transforma. Se você não mudou a ciência, não houve coprodução”, conclui a pesquisadora.
Experiências que inspiram
Os caminhos para a construção de uma ciência engajada com demandas de outros atores envolvidos na conservação da biodiversidade requer dedicação, tempo e, sobretudo, estar disposto a ouvir. “É preciso interagir para mudar nossa visão”, diz Joice Ferreira, da Embrapa Amazônia Oriental. A pesquisadora é uma das lideranças da Rede Amazônia Sustentável (RAS) que já faz pesquisa há mais de 20 anos na Amazônia. “Nossa pesquisa no início era muito centrada na academia, hoje não fazemos nada sem interação com as comunidades locais”, explica Joice Ferreira, que participou de uma das cinco mesas redondas que ocorreram ao longo da Escola.
Camila Ritter, do Instituto Juruá e do INPA, mostrou casos de monitoramento de base comunitária na região da Volta Grande do Xingu e Médio Juruá, no qual os ribeirinhos e indígenas protagonizam formas eficientes de monitoramento e conservação dos recursos naturais. “Os pesquisadores precisam estar de fato no local, conviver, escutar, do contrário, estaremos reproduzindo uma ciência branca europeia”, alerta Camila Ritter.
O Plano Local de Desenvolvimento da Baía do Araçá, em Ubatuba (SP), foi construído em 2016 a partir de discussões sobre os impactos de uma possível ampliação do Porto de São Sebastião. O documento foi resultado de um esforço coletivo de membros da comunidade da Baía do Araçá e da população de São Sebastião, além de instituições de pesquisa, iniciativa privada e órgãos públicos. Esta experiência foi relatada por Alexander Turra, do Instituto Oceanográfico da USP e um dos pesquisadores principais do projeto Biota-Araçá, responsável pela movimentação que resultou no Plano.
Catarina Jakovac, da Universidade Federal de Santa Catarina, mostrou os avanços na produção de indicadores de regeneração natural na Amazônia como uma estratégia eficaz para a tomada de decisão para a restauração florestal. O projeto, parte do SinBiose, lançou um Policy Brief, notas técnicas e um glossário sobre regeneração natural com o intuito de colocar essa estratégia de restauração no âmbito das políticas públicas para a Amazônia. “Conseguimos até o momento informar como e onde a regeneração natural natural pode servir como estratégia para a restauração de ecossistemas. Ainda não vimos os indicadores serem amplamente aplicados e sabemos que ainda podemos aprimorá-los. Mas antes um óculos embaçado do que nenhum óculos” compara Catarina Jakovac.
Já Guilherme Longo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, apresentou uma experiência bem-sucedida de ciência cidadã mediada pelas redes sociais. #DeOlhonosCorais existe desde 2018 no Instagram e convida sobretudo mergulhadores a postarem fotos de corais e sua localização usando a hashtag do projeto. “No começo foi uma experiência difícil, outra linguagem, mas, aprendemos como funcionam as regras [do Instagram] e jogamos o jogo. Tivemos resultados impressionantes”. Foi por meio de uma foto de um cientista cidadão que o estado do Rio Grande do Norte teve a primeira notificação do “coral sol”, uma espécie invasora mundial, que agora ameaça a biodiversidade de corais da costa brasileira. “Com esta informação, o órgão estadual do meio ambiente do Rio Grande do Norte [IDEMA] iniciou um programa de controle da espécie invasora na costa potiguar” , completa Guilherme Longo.
Do outro do lado do Atlântico, Rui Pedrosa, da Universidade de Leiria,em Portugal, apresentou a experiência de interação entre seu laboratório e a indústria e comércio locais e como isso inspirou inovações tecnológicas baseadas na biodiversidade e a valorização de produtos marinhos não convencionais. A experiência resultou no lançamento de produtos como pães, massas e azeite com algas e um gin com extrato de algas. “As grandes empresas muitas vezes têm desenvolvimento tecnológico próprio, mas para as pequenas e médias empresas a parceria com as universidades é essencial”, ressalta Rui Pedrosa, “e a melhor forma para construir conhecimento é com as pessoas, são elas que fazem o desenvolvimento das tecnologias se manter nas empresas”.
As interações com o setor privado foram apresentadas por Roberto Klabin do Refúgio Ecológico Caiman, uma propriedade de uso misto em Miranda (MS) que agrega pecuária extensiva de corte, atividades de ecoturismo, pesquisa e áreas de preservação ambiental. Recentemente, a propriedade passou por um processo de certificação para a oferta de Créditos de Biodiversidade. “A certificadora avaliou todos os efeitos negativos e os positivos para a biodiversidade gerados a partir dos diferentes usos que temos na propriedade e essa análise verificou que temos mais efeitos positivos que negativos, gerando Créditos de Biodiversidade”, explica Roberto Klabin, que participouda recente reunião da COP de Biodiversidade em Cali, na Colômbia. “As discussões sobre Créditos de Biodiversidade ainda são muito iniciais, precisam ser mais aprofundadas”, reflete Roberto Klabin, “há várias ideias em termos de como medi-los, ainda há muita confusão e basicamente não há precificação. Apesar disso, acredito nessa ideia e acho que é um excelente instrumento financeiro para restaurar e proteger a natureza”.
A Escola contou, ainda, com a participação de pesquisadores mundialmente reconhecidos como Robin Chazdon (Universidade de Connecticut, EUA), Matías Enrique Mastrangelo (Universidade de Mar del Plata, Argentina), George Brown (Embrapa) e Rodolfo Dirzo (Universidade de Stanford, EUA).