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“A coprodução não é apenas um método, ela faz parte da descoberta”: Maria Carmen Lemos sobre a ponte entre ciência e política

Para a cientista política Maria Carmen Lemos, a coprodução não é apenas um método – é um processo transformador em que a ciência e a política evoluem juntas, criando soluções mais eficazes para desafios globais complexos

Maria Carmen Lemos, uma mineira de Juiz de Fora, Brasil, é uma voz proeminente no campo da coprodução de conhecimento, um tópico que vem ganhando cada vez mais atenção entre aqueles comprometidos em unir ciência e tomada de decisões. “Meu interesse é entender o que impulsiona o uso do conhecimento científico pelos tomadores de decisão, desde o agricultor, a família, a cidade, o estado, o mundo”, explica a pesquisadora.

Economista formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora, com uma breve passagem pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Lemos construiu sua carreira acadêmica nos Estados Unidos. Depois de obter um mestrado e um doutorado em Ciência Política pelo MIT, ela ingressou na Universidade de Michigan em 2002, onde continua a lecionar e agora está se aproximando da aposentadoria.

Ao longo de sua carreira, Lemos fez contribuições significativas como autora principal do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC-AR5) e da Quarta Avaliação Nacional do Clima dos EUA (NCA4). Ela atuou em vários comitês do Conselho Nacional de Pesquisa dos EUA das Academias Nacionais de Ciências, consolidando ainda mais sua influência no campo. Em 2023, Lemos foi eleita para a Academia Nacional de Ciências, um reconhecimento de suas contribuições impactantes para a ciência e a sociedade.

No Brasil, sua pesquisa se concentrou nas interações complexas entre instituições, comunidades e pesquisadores, especialmente ao abordar os desafios das mudanças climáticas no Nordeste e investigar os impactos ambientais do desastre industrial de Cubatão (SP) em meados da década de 1980. Seu trabalho ajudou a esclarecer a dinâmica socioambiental na interseção da ciência e da tomada de decisões.

Maria Carmen foi entrevistada em 30 de outubro pela ESPCA Co-criando Avaliações de Biodiversidade em São Pedro (SP).

ESPCA Biodiversidade – Como a senhora definiria o conceito de coprodução de conhecimento e o que o distingue das abordagens tradicionais da relação entre ciência e tomada de decisões?

Maria Carmen Lemos – A coprodução, em sua definição mais ampla, é a relação significativa entre cientistas e não cientistas para produzir conhecimento e ação de forma colaborativa. Em sua forma tradicional, os cientistas são vistos como produtores de conhecimento, enquanto os tomadores de decisão são responsáveis por tomar medidas com base nesse conhecimento.

No modelo de coprodução, entretanto, essas funções não são separadas. Em vez disso, o conhecimento e a ação são criados simultaneamente por meio de um processo iterativo de interação entre os dois. Esse relacionamento promove vários resultados importantes: aumenta a propriedade do conhecimento, melhora a adequação dos dados ao contexto da tomada de decisões e cria confiança entre os atores. Essa confiança, por sua vez, fortalece seu compromisso de promover ações em conjunto.

Nos modelos tradicionais, a ciência produz conhecimento, e os tomadores de decisão usam esse conhecimento para agir. Esse modelo pressupõe uma separação clara: os cientistas realizam suas pesquisas, publicam-nas e os tomadores de decisão as leem para informar suas ações, sem nenhuma interação direta entre os dois.

O modelo de coprodução, entretanto, entrelaça esses processos. Os cientistas ajustam seus conhecimentos com base na interação contínua, e os tomadores de decisão também podem ajustar suas decisões. O processo visa produzir tanto novos conhecimentos quanto novas ações como resultado desse esforço colaborativo.

ESPCA Biodiversidade – Quando a coprodução começou a ganhar a atenção de cientistas e tomadores de decisão?  

Maria Carmen Lemos  – Vou começar com a coprodução na ciência climática, porque ela ganhou força mais cedo do que em outros campos quando comecei. Agora ela se espalhou por toda a sustentabilidade, incluindo ecologia e engenharia. Começou no final dos anos 80 com esforços como o IPCC, mas no início dos anos 2000, havia mais foco na usabilidade dessa ciência. Por exemplo, o Programa de Pesquisa sobre Mudanças Globais dos EUA usou o termo “ciência utilizável” em seu mandato, mas ninguém sabia realmente o que isso significava na época.  

Isso desencadeou tanto a pesquisa quanto a prática de tornar o conhecimento utilizável, abrindo uma nova área de entendimento. Já havia literatura sobre como a ciência é produzida e suas conexões com a pesquisa participativa e a pesquisa-ação, mas essas ideias ainda não haviam sido reunidas. O foco passou a ser entender por que as pessoas não estavam usando a ciência e o que poderia ser feito para mudar isso.  

Nos últimos 20 a 30 anos, essa pesquisa se expandiu significativamente. Para mim, ela começou com uma bolsa da NOAA para estudar a previsão climática, que tem paralelos com informações climáticas mais amplas. Meu objetivo sempre foi entender o que impulsiona ou limita o uso do conhecimento científico. Uma descoberta importante foi que a interação entre cientistas e usuários aumenta a probabilidade de o conhecimento ser aplicado, em comparação com os modelos tradicionais de ciência.  

ESPCA Biodiversidade – Como as interações entre cientistas e tomadores de decisão podem melhorar o uso do conhecimento científico?

Maria Carmen Lemos – Acredito que há evidências convincentes de que interações significativas entre usuários e produtores de ciência fazem a diferença. Essas relações aumentam as chances de dois resultados importantes: o cientista obtém uma melhor compreensão do contexto da tomada de decisão e o tomador de decisão compreende melhor as oportunidades e os limites da ciência.

No entanto, para que isso seja realmente eficaz, ambos os lados devem estar dispostos a mudar. Não pode ser uma situação em que um diz: “Eu quero isso” e o outro responde: “Bem, isso é tudo o que tenho para você”. Nessas conversas, talvez nem sempre se consiga exatamente o que se quer, mas geralmente se consegue o que se precisa. Porque, por meio do diálogo, os dois lados podem descobrir como a ciência se encaixa no contexto e o que pode ser feito para que ela se encaixe melhor.

Então, como podemos fazer com que a ciência se encaixe melhor? Melhor comunicação é uma maneira – ela melhora o alinhamento. A personalização é outra. O aprimoramento da compreensão também desempenha um papel importante. E, às vezes, não se trata nem mesmo de uma melhor compreensão, mas simplesmente de fornecer informações mais relevantes para preencher a lacuna.

ESPCA Biodiversidade – Você poderia compartilhar um exemplo de como os cientistas e os tomadores de decisão navegam nesse processo?

Maria Carmen Lemos – Claro. Os modelos climáticos são conhecidos por serem muito incertos. Muitas vezes, os usuários querem saber exatamente o grau de incerteza, mas é muito difícil quantificar isso com precisão. Os cientistas estão trabalhando cada vez mais em maneiras de comunicar melhor a incerteza para que os tomadores de decisão possam fazer escolhas informadas mesmo com informações incompletas. Ao compreender os riscos envolvidos, as pessoas continuarão a tomar decisões com informações incertas. Esse é exatamente o tipo de trabalho em que me concentro.

ESPCA Biodiversidade – Como a participação, o envolvimento e a coprodução diferem na pesquisa?

Maria Carmen Lemos (MCL) – A coprodução, como a conhecemos hoje, surgiu depois que o governo dos Estados Unidos enfatizou a necessidade de uma ciência utilizável. Antes disso, havia formas anteriores, como o envolvimento da comunidade em serviços públicos, como as associações de pais e mestres (PTAs), em que os pais ajudam os professores nas tarefas, coproduzindo efetivamente um serviço. Da mesma forma, as comunidades que monitoram dados ecológicos são outro exemplo, em que a colaboração ocorre sem necessariamente produzir uma ação imediata.

A pesquisa participativa, por outro lado, é mais interativa, em que os sujeitos da pesquisa estão envolvidos no processo, como por meio de grupos de foco ou workshops. O objetivo, no entanto, ainda é coletar dados, não coproduzir conhecimento ou ação.

O engajamento é um conceito mais amplo e pode se sobrepor à coprodução e à pesquisa participativa. Na prática, essas abordagens geralmente se entrelaçam, e isso é perfeitamente aceitável. Quando esses termos se tornam muito rígidos, eles podem limitar o potencial do que pode ser alcançado. O ideal é que a coprodução comece no estágio da proposta, com as partes interessadas ajudando a moldar as perguntas da pesquisa e a coletar dados, mas também pode evoluir após a pesquisa, como quando os formuladores de políticas contribuem para a criação de um resumo da política. Trata-se do processo, não apenas da definição.

ESPCA Biodiversidade – Como vocês avaliam a eficácia da coprodução na pesquisa e na tomada de decisões?

Maria Carmen Lemos – É preciso avaliar. Costumo dizer que se eu tivesse um dólar para cada vez que menciono a avaliação, eu estaria rica! É essencial avaliar porque, sem isso, não é possível orientar os outros ou evitar a repetição de erros. O relacionamento com as partes interessadas, os agricultores ou as comunidades nunca é uma perda de tempo; é valioso, mas há um custo de oportunidade em termos de tempo e recursos.

Para qualquer mudança que queira implementar, você precisa avaliar criticamente o que está fazendo e ser estratégico em seu projeto. Se você gosta de trabalhar com comunidades, isso é importante, mas também precisa reconhecer os desafios do aumento de escala. Você não pode esperar trabalhar com algumas comunidades e depois aplicar esse modelo em todo o mundo. Para aumentar a escala, é preciso coproduzir com os tomadores de decisão em níveis mais altos.

Os pesquisadores que enfrentam desafios globais como perda de biodiversidade, mudança climática, pobreza ou segurança alimentar precisam colaborar mais e entender que cada escala – comunidade ou governo – desempenha um papel crucial. Amar um não significa abandonar o outro. Devemos aprender uns com os outros, não criticar ou julgar.

ESPCA Biodiversidade – Que conselho você daria aos cientistas que estão considerando o uso de processos de coprodução em suas pesquisas?

Maria Carmen Lemos – Há muitas razões para fazer pesquisa, mas ela começa com a identificação da mudança que você deseja fazer e do sistema ou dos atores que deseja influenciar. Entenda o que você deseja alcançar e, em seguida, consulte a literatura para obter orientação – há uma grande quantidade de experiências com as quais aprender. Seja francamente honesto com relação ao que é realista e por onde começar. Você precisa pensar na coprodução não apenas como um método, mas como parte integrante da sua pesquisa e do processo de descoberta. Não se trata de um apêndice de seu trabalho, mas sim de sua parte central. Porque, tão importante quanto identificar as causas da poluição das praias ou da degradação ambiental, é descobrir as melhores maneiras de lidar com elas. E a coprodução é uma parte fundamental dessa solução.

Portanto, sempre pense na avaliação desde o início – a coleta de dados é essencial para a avaliação posterior. A paixão é fundamental, mas a racionalidade também. Se você não tem paixão por se envolver com outras pessoas, a coprodução talvez não seja para você. Trata-se de encontrar um equilíbrio entre sua paixão e os aspectos práticos de causar um impacto real.

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