Entender como se dá a complexa relação entre função e serviços ecossistêmicos ainda requer aprimorar modelos e combinar abordagens
Por Paula Drummond
Os ecossistemas realizam processos naturais que sustentam a vida no planeta e geram benefícios diretos ou indiretos para o bem-estar humano, como a produção de alimentos e a regulação do clima. As funções ecossistêmicas referem-se às atividades e processos naturais realizados por organismos e ecossistemas, como a ciclagem de nutrientes, a fotossíntese, a formação de solo e a polinização. Já os serviços ecossistêmicos são os benefícios diretos ou indiretos derivados dessas funções, como a produção de alimentos, a regulação do clima, a purificação da água e o fornecimento de matérias-primas.
Para compreender melhor a conexão entre essas funções e serviços, pesquisadores destacam abordagens como o uso de bromélias como modelos em ecossistemas tropicais, o papel do solo e seu microbioma e a participação comunitária em zonas costeiras. A integração de conhecimentos científicos e tradicionais emerge como ferramenta crucial para orientar políticas de conservação sustentável.
Bromélias como modelos de ecossistemas
O monitoramento de mudanças ambientais em ecossistemas requer estratégias que integrem diversidade funcional e considerem as peculiaridades locais, especialmente em ambientes tropicais, explicou Daiane Srivastava, University of British Columbia. A pesquisadora ilustrou o tema por meio de sistemas modelo baseado em bromélias.
As bromélias são plantas cujas as folhas possibilitam a armazenar água e formar “piscinas” em seu interior. Isto transforma cada planta em um mini-ecossistema abrigando animais, algas, bactérias e fungos. A matéria orgânica que cai no tanque é reciclada e pode ser usada pela própria planta e por outros organismos, por isso, podem ser consideradas um bom modelo para estudar o funcionamento de ecossistemas em diferentes condições.
O estudo apresentado por Srivastava avaliou 1.046 bromélias em 26 locais no continente americano e o resultado foi que estes ecossistemas têm respostas que variam conforme o local. Por exemplo, a diversidade dos invertebrados foi mais sensível às alterações na precipitação do que sua biomassa total. Ou seja, a biomassa permanece estável, ainda que a composição de espécies mude. Essas variações estão relacionadas à forma como as bromélias armazenam água e à composição das espécies em cada local, destacando a dificuldade de estabelecer limites gerais para o funcionamento seguro dos ecossistemas.
Embora essas respostas sejam influenciadas por contingências geográficas, elas podem ser previstas por regras baseadas em fatores como a forma que armazenam água, número de espécies que desempenham papéis semelhantes no ecossistema e características geográficas. Isso sugere que, mesmo em ecossistemas complexos, como os tropicais, é possível generalizar padrões de resposta ambiental se conhecermos essas regras.
No entanto, Srivastava coloca alguns desafios para o monitoramento de ecossistemas tais como “quais métricas de diversidade funcional, taxonômica, interativa ou filogenética são mais adequadas para prever serviços ecossistêmicos? Como garantir que estamos medindo as características corretas para conservação? E será que a diversidade funcional é uma alternativa mais eficaz do que a taxonômica nos trópicos?” Essas questões reforçam a importância de conectar escalas espaciais e funcionais para orientar políticas de conservação e estratégias de manejo.
Serviços ecossistêmicos invisíveis
Os solos desempenham um papel essencial no fornecimento de serviços ecossistêmicos, sustentando cerca de 95% da produção global de alimentos. Apesar de sua importância, estima-se que apenas 1% das espécies de microrganismos do solo sejam conhecidas. A biodiversidade do solo é crucial não apenas para produzir alimentos, mas também para processos como a ciclagem de nutrientes, o controle biológico e a biorremediação.
Segundo George Brown, da Embrapa Florestas, os serviços ecossistêmicos associados ao solo estão avaliados em mais de 1 trilhão de euros anuais, com destaque para a reciclagem de matéria orgânica, que representa 50% desse valor. Apesar disso, o Brown chama atenção que o diagnóstico global de biodiversidade e serviços ecossistêmicos da Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos – IPBES de 2019 não abordou essa importante contribuição. Além disso, uma recente enquete global da FAO (Organização Mundial para a Agricultura e Alimentação) das Nações Unidas mostrou que poucos países têm inventários ou programas de monitoramento específicos para a biodiversidade do solo. Uma exceção é o projeto sOilFauna,, uma iniciativa global que mantém um banco de dados de fauna de solo.
Composta por animais microscópicos como a microfauna (nematoides, tardígrados) e a mesofauna (ácaros, colêmbolos), até os grandes invertebrados da macrofauna (formigas, cupins, minhocas, besouros, lacraias, aranhas, larvas diversas), e os vertebrados da megafauna (tatus, toupeiras), os animais do solo incluem mais de meio milhão de espécies no mundo. Muitos deles são bioindicadores promissores que respondem rapidamente a mudanças ambientais, e podem ser utilizados para avaliar a fertilidade, os níveis de contaminação, os efeitos de práticas de manejo, e os impactos da perturbação ambiental. Além de serem fáceis de coletar e identificar, possuem alta densidade e biomassa, especialmente em regiões tropicais, onde insetos sociais dominam. Métodos padronizados já estão disponíveis, facilitando o uso desses bioindicadores em diferentes sistemas de uso da terra. O reconhecimento de sua funcionalidade pode impulsionar ações globais para proteger a biodiversidade do solo e maximizar seus serviços ecossistêmicos, fundamentais para o futuro sustentável do planeta.
Já os microrganismos do solo têm um papel conhecido para a melhoria da saúde e nutrição das lavouras agrícolas. O caso mais emblemático é das bactérias fixadoras de nitrogênio. O chamado microbioma do solo compreende a totalidade dos microrganismos, seus genomas e funções em um determinado ambiente, incluindo bactérias, fungos, arqueias, protozoários e vírus. A diversidade destes organismos impressiona: cada 1 grama de solo pode conter até 10⁹ células microbianas. Esse ecossistema invisível desempenha papéis críticos na ciclagem de nutrientes, na supressão de doenças, na estruturação do solo e na purificação da água. “Em sistemas agrícolas, práticas como o plantio direto, a adubação verde, rotação de culturas, compostagem e integração lavoura-pecuária-floresta podem aumentar a diversidade microbiana, contribuindo para a sustentabilidade, a mitigação de emissões de gases de efeito estufa e a resiliência do ecossistema”, explica Lucas Medes, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (CENA/USP).
Por outro lado, as mudanças no uso da terra afetam profundamente o microbioma, afirma Mendes. Um estudo comparando solos de floresta e pastagem mostrou que solos florestais apresentam maior metabolismo de nitrogênio e metano, enquanto os de pastagem liberam mais metano e óxido nitroso.
Soluções baseadas no microbioma também têm se mostrado promissoras na restauração ecológica e na agricultura. Em experimentos, maior diversidade microbiana foi associada ao melhor crescimento da soja e uma menor infecção por nematóides, evidenciando o potencial do manejo microbiano na promoção de sistemas mais produtivos e sustentáveis.
Participação comunitária
Alexander Turra, do Instituto Oceanográfico da USP, destaca a complexidade dos ecossistemas costeiros e a necessidade de abordagens holísticas para sua conservação. Ele aponta os desafios associados ao estudo da biodiversidade marinha costeira, que exige métodos de pesquisa diversificados, incluindo o uso de conhecimentos tradicionais. Segundo Turra, compreender os diferentes ambientes das zonas costeiras, bem como os processos ecológicos e as respostas às pressões humanas, é essencial para a formulação de políticas e planos de ação eficazes. Nesse contexto, a integração entre ciência e sociedade, por meio de processos participativos, é fundamental para ampliar o entendimento sobre os serviços ecossistêmicos e enfrentar ameaças que afetam esses ambientes.
Um exemplo é o Plano Local de Desenvolvimento da Baía do Araçá, em Ubatuba (SP), de 2016, a partir de discussões sobre os impactos de uma possível ampliação do Porto de São Sebastião. O documento resultou de um esforço coletivo envolvendo comunidades locais, instituições de pesquisa, setor privado e órgãos públicos. Esse plano é uma demonstração de como a participação comunitária pode ser catalisadora de soluções sustentáveis e adaptadas às realidades locais. Ele também menciona o Diagnóstico Brasileiro Marinho-Costeiro da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, que inclui um capítulo escrito pela comunidade, mostrando o poder das abordagens colaborativas.
Entre os desafios apontados está a necessidade de revelar, de forma participativa, os padrões espaciais não lineares da biodiversidade marinha e dos serviços ecossistêmicos em praias. Para isso, Turra sugere o uso de cenários e planos de ação que considerem múltiplos usos, combatam ameaças e promovam o desenvolvimento sustentável.
Sobre a Escola São Paulo de Ciência Avançada “Cocriando Avaliações de Biodiversidade”
Organizada pelo Programa de Pós-graduação em Ecologia da Unicamp, com apoio da Fapesp, a Escola São Paulo de Ciência Avançada “Co-criando Avaliações de Biodiversidade” reuniu 57 participantes de 22 países de quatro continentes, entre pós-graduandos, pesquisadores em início de carreira, gestores e técnicos da área ambiental. Os participantes passaram 14 dias em São Pedro (SP) discutindo formas de integrar conhecimento acadêmico e prático sobre biodiversidade para subsidiar tomadas de decisão.